Ouvi agora há poucos uma música em que a letra termina dizendo “que bem me faz você”, e se esta sensação ainda não me é conhecida, me lembrei de um momento especial.
Foi tempos atrás, em outro pais, outra cidade, outras referências, uma delas, Montmartre e suas escadas quase sem fim, (para quem gosta dos detalhes das histórias).
Quase sem fim porque sempre, por maiores que sejam, todas as escadas levam para algum lugar, e estas, no caso, ao topo do morro de onde se podia ver toda a cidade de Paris.
Morava, numa rua perto, uma amiga minha que tinha uma filhinha, linda, loira como haveria de ser qualquer francesinha, apesar do seu pai ser árabe. E andávamos pelo bairro no outono, conversando, às sombras das arvores, sobre o sentido e a óbvia fragilidade da vida, inspirados pelas folhas das árvores que, após o balé da sua inexorável descida, deitavam-se no chão, e ali, formavam o dourado tapete que iluminava pela sua beleza o caminhar dos passantes.
Após uma tarde dessas que somente Paris pode proporcionar, subimos de volta para seu simples apartamento, para, como de costume, tomar esse chá, sempre quente e defumado, que amansava o frio que, já intenso, anunciava um inverno rigoroso.
Foi quando a menina, Luz era seu nome importado da Argélia, virou para sua mãe e perguntou :
“O que VOCÊ está fazendo ?”
E a ênfase que colocou ao pronunciar esse “você” tornou esse momento totalmente corriqueiro despertado pelo assovio da chaleira, em um aprendizado eterno.
Pois essa pequena de 3 anos, disse, claramente que ela queria saber dela, da sua mãe. Queria saber o que ELA estava fazendo. Ela não queria saber quanto tempo levaria ainda para comer, ou se podia trocar o chá dos velhos por algo mais divertido junto com um pedaço de bolo. Queria saber dela, sua mãe, um outro ser, que nessa hora era muito mais importante para ela que um chocolate quente bem cremoso e que, seja dito, em Paris é sempre tão gostoso que faz muitas crianças perderem toda a sua natural elegância se tiverem que esperar até o leite ferver.
Este “você” tão singelo para os adultos era o primeiro marco da sua identidade ainda a ser construída, o contraponto de um “eu” que ela ainda não sabia reconhecer e menos ainda verbalizar, mas que já despontava, dizendo para o mundo: “cheguei para ficar”, para brilhar, parar viver, porque aqui, hoje, começo, “a part entière”, completamente, a ser alguém.
Hoje não sou mais um mero pedaço de outra mulher, hoje, eu existo.
E eu, que observava de longe, não ouvi “o que você está fazendo”, mas, “Mãe eu te amo, obrigada por cuidar de mim”, e o sentido do amor apareceu neste instante, quando pela primeira vez, a menina tomou consciência de que era um ser independente, mas conectada à outra pessoa pelo laço puro do afeto.
E entendi que o amor verdadeiro se expressa pelo carinho, pelo beijo na bochecha que recebemos daqueles que tornamos mais importante que nos mesmos, e que acalenta o coração como uma xícara chá esquenta as tardes do inverno de Paris.